O
emocional em pandemia.
O
tempo bom continuava zoando com a nossa cara. As semanas passavam e
com elas os fins de semana sem poder ir para rua. Não lembro de ter
vivido uma sequência tão longa de dias de sol, próprios para a
praia, quanto naqueles meses de março e abril de 2020. Foi um
período de alertas de economia de água dada a escassez por falta de
chuva. Algo inusitado para uma cidade como Joinville, onde o tempo
chuvoso predomina. A estiagem parecia querer nos lembrar de que não
deveríamos reclamar tanto dos dias de chuva.
Sem
falar das encantadoras noites estreladas. Estudos sobre
o meio ambiente e condições climáticas mostravam que a redução
do trânsito de veículos baixaram os índices da poluição do ar e
com isto o céu exibia a sua magnitude estelar. Em tempo em que
olhamos mais para o celular do que para o céu, passamos a dar importância em procurar as tais "estrelas que riem",
segundo o Pequeno Príncipe.
Passados
os primeiros dias de isolamento, quando achávamos que seriam os
únicos, me dei conta de que não havia sido contaminada. Cumpri
o protocolo de ficar dentro de casa, sem contato com o mundo externo.
O sentimento que deveria ser de alívio me causou pânico. Era uma
contradição, mas real. Eu estava salva e com o mundo inteiro em
pandemia, sair à rua significava me contaminar. Senti verdadeira
paúra. Chorei de medo diante desse pensamento. Mais do que nunca
deveria me preservar. A euforia acabou, a motivação para ficar em
casa se foi e a esperança pela retomada da normalidade também.
Por
sorte, naquela manhã conversei, por telefone, com um médico
geriatra, amigo de Curitiba. "Estou me sentindo muito mal",
disse enquanto relatava o que sentia, e ele me incentivou a sair e
dar uma caminhada na quadra, tomar sol. "Vai ser mais difícil
curar você de depressão do que do coronavírus", afirmou
enquanto conversava sobre outros assuntos para desviar a minha
atenção.
Naquele
dia tudo parecia corroborar para agravar o meu estado emocional. Foi
divulgada a notícia da morte, em Joinville, de um empresário de 68
anos. Embora não o conhecesse, sabia quem era e a associação da
idade dele com a minha foi desastrosa. Pior ainda, saber do
internamento na UTI, em estado grave, de um amigo dos meus filhos.
Foi aterrorizante. A pandemia estava muito mais perto de nós do que
imaginávamos. Daí cadê coragem para sair na rua mesmo que por
recomendação do amigo médico.
Com
os filhos Vinícius e Bernardo falava todos os dias. Fiquei mais
preocupada com o Bernardo, que por ser médico veterinário mantinha
o trabalho e contato com as pessoas na clínica. Enquanto o Vinícius continuava com as suas atividades de dentro de casa. Com a sensibilidade à
flor da pele, naquele dia, não tive coragem de telefonar e só
mandei mensagem. Sabia que iria chorar e deixá-los preocupados.
Passado algum tempo a videoconferência foi a forma mais fácil de
comunicação visual e de conversa. Do almoço do dias das mães não
abrimos mão. Comemoramos em família.
Nesse
meio tempo comecei a perceber que os piores dias, para mim, eram as
segundas-feiras. Acordava chorona, abatida, desanimada. Mais uma
semana iniciava e eu não podia sair, não podia fazer as atividades
de trabalho, ou as atividades físicas diárias. Não conseguia, como
ainda hoje, ter disposição para me exercitar com aulas online.
Acordava por volta das 7h30 tentando manter uma rotina seguindo
orientações dos médicos e psicólogos. Mas essa rotina de acordar
e não ter o que fazer não era a minha e por isso era uma situação
que tanto me abatia.
Mais
do que nunca a interação com terapeutas passou a ser considerada
como de primeira necessidade. Foi quando a minha terapeuta começou a
me dar atendimento por telefone. E isso foi muito importante, eu
estava realmente entrando em um processo de grande tristeza. Enquanto
conversávamos eu chorava e como sempre ela me trazia à realidade.
"Suas preocupações tem fundamento" dizia ela, "mas
não podemos nos afundar".
Quando
relatei o medo de sair de casa, ela me perguntou o que eu teria para
fazer na rua que não pudesse ser adiado. Respondi: nada. "Então
é uma possibilidade que você tem de ficar em casa, diferente de
tantas pessoas que não podem e estão se arriscando".Ela me
acalmava.
Sobretudo,
a tristeza do isolamento era a reclamação que mais se ouvia. O
clima que pairava no ar era denso. Todos carentes da presença física
dos filhos, dos netos, dos amigos. Começava a correr notícia de
pessoas com síndrome do pânico. Recordo de ter falado com uma
pessoa que me perguntou: "Que dia é hoje?". Isso me
impactou.
As notícias chegam por vários canais.
O
que mais alterava meu estado de ânimo era estar reclusa para evitar
a disseminação do vírus e assistir de dentro de casa ele se
alastrando por toda cidade, para não falar do mundo. Informações
chegavam a mim e não só pelos noticiários. Uma prima, que mora na
Espanha, outra nos EUA, amiga da Alemanha, todas relatavam a pessimista realidade que estavam
vivendo por lá. Um horror.
A orientação
do psiquiatra Primo Paganini, em entrevista a CNN, naquele
momento, me pareceu razoável: "Não levem as preocupações
para daqui a 1 ou 2 meses, concentrem-se no hoje, no máximo amanhã".
Ele se referia ao tempo, e eu decidi limitar também ao espaço da
minha casa, minha família e não levar nossas preocupações para
muito longe de nós. Um, dois meses, naqueles início já era uma
previsão de futuro muito grande. Ninguém podia imaginar em cinco ou
seis meses como estamos até hoje.
Nessa
época, já estava me sentindo enganada, e hoje resta a comprovação.
Foi muito dinheiro desperdiçado, usado indevidamente e para
corrupção. As orientações eram para que deixássemos de assistir
aos noticiários. Nossa atenção, passou a se concentrar nos boletins
oficiais gerido pelo então Ministro Luiz Henrique Mandetta. A
diferença entre as notícias e os informativos, não sei. Um era
mais aterrorizante do que o outro, mas acreditávamos em Mandetta,
que no decorrer da pandemia, tornou-se uma grande decepção.
Mudança
de comportamento.
Foi
um período em que fiz uma campanha para que conversássemos mais por
telefone do que por troca de mensagens de WhatsApp. Reconheço que
não obtive a adesão que pretendia. O hábito de teclar está mais
enraizado nas pessoas do que elas imaginam. Mandar figurinha
tornou-se mais eficaz e rápido. Um só emoji diz mais do que muitas palavras. Mesmo assim com algumas pessoas eu utilizei mais o telefone
ao contrário de mandar mensagem.
Foi
com um telefonema que a história da Hildinha, uma amiga de 78 anos,
não poderia ser resolvida se tivesse ocorrido por mensagem. Aliás,
um recurso que ela não se habitua a usar.
Como
tantas outras vezes, passamos horas ao telefone e ela me contou,
muito incomodada, que não conseguia entender como uma caixa de
fósforo apareceu em cima da mesa da cozinha. "Ninguém entrou
aqui em casa, eu não uso fósforo para nada, como isso veio parar
aqui" e completou: "Estou muito 'aperreada' com isso"
disse ela com o seu forte sotaque nordestino.
Meu
conselho foi para que ela jogasse a caixa no lixo imediatamente.
Porém, inconformada, sem uma explicação plausível e resistente a
minha recomendação, disse que "não, até descobrir como
aquilo foi parar na mesa". Estamos num processo de confinamento,
se jovens estão confusos, imagina os idosos. Não desacredito em
nada do que a minha amiga contou, porque sei que ela é 100% lúcida.
Mas confusão mental qualquer pessoa pode ter.
Na
dúvida, entre se ela se confundiu, se foi abduzida dentro de alguma
crença espiritual, se brincadeira ou não, fiquei preocupada e dei
outra opção. Pedi que tirasse todos os palitos de dentro da caixa e
colocasse dentro de um copo com água. "A caixa vazia",
continuei "deixe no mesmo lugar em que você a encontrou, assim
você continua o trabalho mental de procurar a explicação que
procura". Ela assentiu, mas até hoje não sabe o que aconteceu.
Na
continuidade o distanciamento foi perdendo o seu rigor. Mesmo aquelas
pessoas que se mantinham distantes das academias, dos
restaurantes, e do convívio com amigos, passaram a ter contato
pessoal com a família. Muito antes disso, contrariando as
orientações, passei a visitar amigos que sabia estavam se cuidando
tanto quanto eu. Em busca de espaço para me movimentar aceitei o
convite do Ricardo e passei a ir para a fazenda. Lá eu tinha com
quem conversar, lugar para grandes caminhadas e boa companhia.
O que estava ruim para nós, ficou
pior quando, por decreto, o prefeito de
Joinville voltou a determinar algo como um lockdown para o idoso.
A proibição de frequentar qualquer espaço público veio com o Decreto 38.520/2020 e provocou muitas
manifestações de desagrado. "A saída que que temos é agir na clandestinidade": dizíamos tentando
manter o bom humor e nos encontrando, em grupos de no máximo três pessoas, nas nossas casas.
Mais tempo longe das atividades rotineiras e com alguns quilos a mais, segui o conselho de uma amiga e deixei de lado as confortáveis calças largas e as do tipo legging usadas no dia a dia. Ela, cumprindo expediente em home office, confessou: "Mesmo dentro de casa só uso calça jeans. Elas me deixam em estado de alerta sobre o meu peso." Dito e feito. Foi uma grande mudança, inclusive sobre o meu emocional. Andar desarrumada não faz parte da minha rotina.
Lives,
a alegria do povo
Ah!
Como elas foram importantes. Verdadeiras companheiras dos fins de
semana. Começaram mansas e despretenciosas e se tornaram mega
eventos. O único objetivo era arrecadar fundos aos necessitados da
pandemia. Para isso bastava, um violão e um microfone, no máximo
uma mesa de som. Aos poucos se transformaram em shows grandiosos
capaz de suprir o ganho dos músicos, da equipe técnica e mais do que qualquer coisa, em cachês milionários para os artistas.
As
primeiras das quais tenho lembrança foram as do Bruno & Marroni
e Gusttavo Lima. Realizadas, ao estilo fundo de quintal, na
churrasqueira a beira da piscina de suas belas moradias. Sem maiores
cuidados, se apresentavam de bermuda e chinelo e verdadeiramente se
sentindo em casa, beberam muito e por isso receberam duras críticas
diante de tal comportamento.
Após
este infortúnio, ajustada a proibição de ingestão de álcool
durante as apresentações, os grandes nomes de empresas de bebidas,
entraram firme no patrocínio e se adonaram dos cenários sobre o
palco, como moldura para os artistas. Assim começou um grande
desfile de importantes nomes da música brasileira a cantar para cada
um público sentado no sofá da sala.
Em
casa, de verdade, assistimos Sandy & Junior, Os Menotti, Marília
Mendonça, Fafá de Belém, Ivete Sangalo. A medida que nomes famosos
se organizavam para as suas lives, outros iam anunciando eventos
futuros, em dias e hora diferentes de forma que uma não atrapalhasse
a outra. A primeira grande live, estruturada como um evento foi a dos
Amigos: Xitãozinho e Xororó, Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano.
Lembro até, da situação de constrangimento de Xororó diante das
palavras descontraídas e alguns palavrões do irreverente Leonardo.
O
que não faltou nessas lives, no papel de acompanhante, foi o vinho,
o espumante, o gim e a cerveja. Muita cerveja, para a alegria das
lojas de conveniência e entrega de delivery. Bebemos muito. comemos
muito e engordamos muito. Toda uma alegria convertida depois em
problema. Muitas vezes tive uma espécie de ressaca moral. Coisa mais
degradante beber sozinha. A euforia inicial era boa a conscientização
no dia seguinte, não.
Uma
vez que eu acompanhava a programação das lives, enviadas pela minha
sobrinha Taís, tratava de repassar para os grupos de amigas. Lembro
de certa vez, ao fazer a indicação da apresentação de Sérgio
Reis, e em outra ocasião a de Diogo Nogueira, ambos enchendo de alegria os nossos
solitários almoços de domingo, ter ouvido de uma amiga: "Minha mãe disse
que não sabe o que seria dela sem as indicações das lives que a
"Quel" faz". O comentário nos fez rir, afinal é ela
quem cuida da mãe dia e noite, mas sou eu que a salvo.
Impossível
enumerar todas as lives. Algumas aconteciam pelo YouTube, outras pelo
Instagram, Facebook. Houve uma explosão de transmissões ao vivo sem
precedentes. Quem poderia imaginar que um dia iríamos assistir shows
ao vivo sem pagar ingresso. Inspirado nos cantores outras aconteceram
e não só de música, foi uma derrame de palestras, aulas, compra e
venda, consultas médicas, reuniões governamentais, empresariais. A
pandemia fez o mundo se transformar em realidade virtual.
Legenda
de foto para acesso do deficiente visual. Montagem de foto com
calendários de março a setembro, relógios e eu representando o blog
olhando para as imagens com o sentido de ver o tempo passando. Cor predominante: roxa. Arte de Leticia Rieper.
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