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Legenda
#PraCegoVer - Card de fundo branco com duas fotos: no canto em cima à
direita Inge, do lado esquerdo, usa roupa branca. Ao centro um oficial
com o uniforme do exército indiano e na direita Gil usa terno cinza.
Embaixo no canto esquerdo, foto atual de Inge e Gil de roupas preta. |
BAGAGEM
PARA A VIDA:
MISSÃO DE PAZ EM MOÇAMBIQUE
Raquel
Ramos
especial
para Francisca Edição 22
A
executiva Inge Doubrawa Fernandes, 73 anos, é mãe de dois filhos e
tem duas netas. Casada com Gil Fernandes, divide residência, desde
1992, entre Joinville e Portugal. Cidadã do mundo, já morou em
Paris e nos Estados Unidos, mas a experiência mais eloquente de sua
trajetória pessoal deu-se no período em que esteve nos campos de
guerra, na África, em ação humanitária. Tudo começou muitos anos
antes, em Brasília. Na década de 1980, a construção civil
desenvolvia-se intensamente na capital do país. O espírito
empreendedor e sua ligação com a empresa de metais sanitários
Docol levaram-na à gerência de um escritório de representação e
vendas no Distrito Federal. A transferência trouxe novas amizades –
e ela conheceu Gil. “Em 1987, ele veio para o Brasil, como
representante da Unesco. Um amigo nos apresentou, saímos juntos,
namoramos e, em 1991, nos casamos”, conta.
O
primeiro país para onde viajou como esposa do diplomata foi a
França, onde o casal permaneceria até 1992. Na época, decidiram
comprar um apartamento em Portugal. A intenção era que todos os
filhos fossem morar lá: os dele e os dela. Acostumada a viajar como
turista para os Estados Unidos e a Europa, incluindo a Alemanha –
onde ficou para estudar e, por três vezes, foi bolsista do governo
alemão e do Instituto Goethe –, ter endereço em outro país não
era novidade para a joinvilense. Ainda na França, seu marido
aposentou-se pela Unesco e logo começou a trabalhar na Organização
das Nações Unidas (ONU), em uma Peacekeeping Operation – como se
denominam as operações de manutenção da paz após conflitos
militares. “A ONU zela para que as partes em conflito cumpram os
acordos de paz assinados”, explica Gil. “Ele foi primeiro para
Moçambique. Três meses depois, eu me inscrevi no programa de
voluntários para a missão de paz em países saídos da guerra, e
fui para junto dele”, relata Inge. Quando começa a expor os fatos
sobre sua vida na África, passadas três décadas, ela ainda se
emociona. Procuro saber o que mais a impactou naquele contato
inicial. Como foi a adaptação de quem trocou países de Primeiro
Mundo pela África? “O que mais me chocou foi a miséria”,
responde, sem hesitar. “Mesmo em Maputo, a capital do país,
faltava tudo, inclusive alimentos”, recorda-se. “As pessoas iam
ao supermercado e nada encontravam para comprar. De repente, aparecia
lata de marmelada; então, em todas as casas, encontrávamos
marmelada para comer.”
Por
conta do cargo diplomático do marido, Inge podia comprar alimentos
em um mercadinho que a ONU mantinha nos acampamentos. Apesar das
dificuldades, reconhece não ter vivenciado os piores dias de
escassez. “Na época, já se encontrava peixe, porque haviam
‘desminado’ (tirado as minas) os lugares onde as ‘peixeiras’
funcionavam.” A alimentação era peixe e camarão. “Às vezes,
apareciam ovos da África do Sul e o povo corria para comprá-los”,
descreve sorrindo, como quem se admira ao lembrar da carência de um
alimento tão comum. Comiam pirão, peixe, banana cozida.
Durante
o período em que Gil viajava pelo interior, ela ficava em casa,
enquanto os colegas moravam em acampamentos, barracas ou contêineres.
Mesmo em situações de dificuldade, as pessoas não deixavam de ter
uma vida social. “A esposa de um amigo me contou que, no auge do
conflito, ela e as amigas iam se encontrar no Polana, único hotel
que não foi destruído durante a Guerra da Independência e, depois,
pela Guerra Civil. O prédio havia sido saqueado, como outros
edifícios, no pós-guerra, mas se mantinha em pé. Ela e as outras
levavam de casa o seu prato, sua comida, sua bebida, seu copo.
“Reuniam-se pelo simples prazer de conviver entre amigos”,
descreve.
Inge
Fernandes é uma pessoa de rotina simples. Veste-se com discrição
minimalista. É do tipo que, no dia a dia, busca almoço no buffet
por quilo. A vida sem ostentação parece não condizer com a criação
de quem desfruta de padrão socioeconômico alto – ou talvez seja
justamente por isso que ela mantém esse comportamento. Estudou nas
melhores escolas e tem conhecimento e hábitos sociais de quem sabe
receber com requinte. Na África, por vezes, constrangia-se quando
sabia que alguém podia aparecer e nada tinha para oferecer. Lá isso
era normal: “Se só há água, então vamos tomar água”,
costumavam dizer.
As
diferenças de ordem social eram sem precedentes para a brasileira.
Alugar um imóvel com os empregados do morador anterior na casa, por
exemplo, era algo normal por lá nos tempos de guerra. “Em
Moçambique, moramos numa casa já com dois funcionários. Um de nome Chico, e o cozinheiro, o Seu Sebastião.” Indago o motivo, e ela
responde categórica: “Porque eles eram muito pobres. Se fossem
mandados embora, com a mudança do inquilino, não teriam onde moram
nem o que comer. Assim, continuavam na casa, com o emprego e
recebendo seu salário”. Inge vê a situação como uma questão
humanitária, uma forma de sobrevivência. “Nunca pensei que fosse
do jeito que é, com tanta miséria”, recorda-se, daqueles tempos
em que faltava até um teto para a maioria. Por outro lado, confessa
que, neste mundo tão carente de bens materiais e condições de
subsistência, jamais se sentiu insegura ou com medo. “Esse meu
lado aventureiro é herança de família: meu pai era assim, de fazer
acontecer e enfrentar”, acrescenta Inge.
A
conversa saltou para a ação de Inge na África. Tanto a Guerra pela
Independência quanto a Guerra Civil já haviam terminado, e a
atuação da joinvilense foi em missão de paz. A primeira função
que desempenhou foi a de levantar o número de moradores de Maputo e
cadastrá-los, para que fizessem o título de eleitor. Só assim
poderiam votar. Isso marca o início da era das eleições de
Moçambique e a permanência de Inge por dois anos e meio naquele
país. Foi então que conheceu Abina, uma irlandesa da mesma idade
que a sua, de quem se tornou amiga e companheira de trabalho. Essa é
uma das lembranças marcantes que emocionam. Histórias, aventuras e
experiências continuam latejantes na memória. Triste, lamenta ter
perdido contato com a amiga.
Moçambique
se preparava para as primeiras eleições. Desde o final do período
de colonização, quando os portugueses foram embora, a Resistência
Nacional Moçambicana (Renamo) começou as operações na província
de Manica. Isso foi em 1975, após a Independência. A Renamo era um
grupo de guerrilheiros que lutavam contra a Frente de Libertação de
Moçambique (Frelimo), movimento anticolonialista, de orientação
socialista, que assumiu o poder após a independência.
O
conflito civil começou em 1977 e morreram cerca de 1 milhão de
pessoas. A região, à época, recebeu civis de vários países para
ajuda humanitária. Com o fim da guerrilha e a assinatura do tratado
de paz, essas frentes de libertação transformaram-se em partidos
políticos. E isso tinha que ser monitorado, para que pudessem
ocorrer as primeiras eleições. As pessoas deixaram de ser
guerrilheiras e adquiriram direitos civis.
A
missão da qual Inge participaria recebeu o nome de Onumoz, uma
operação das Nações Unidas em Moçambique, e durou de 1992 a
1995. Tinha como objetivo facilitar a aplicação dos acordos,
controlar o cumprimento do cessar-fogo e supervisionar o processo
eleitoral. Esse trabalho era feito em todo o país. Inge havia sido
designada para atuar na grande Maputo e, junto com ela, estava Abina,
sempre com Youssef, um policial egípcio. Com o fim da guerra, uma
parte da população saiu dos campos de conflito e migrou para a
capital. “A cidade estava toda destruída e, à sua volta,
formou-se uma enorme favela”, conta. Não era permitido andar
sozinha na rua. “Sempre estávamos em duas pessoas, e esse policial
egípcio nos acompanhava na maior parte do tempo.”
Sobre
o caos generalizado, com o fim da guerra, continua: “Era
lamentável. Todas as residências usadas até então pelos
portugueses, durante o período colonial, foram abandonadas”. O
desespero da população guerrilheira que chegava era tanto, que
entravam nas casas, arrancavam o taco do assoalho, portas, tudo que
fosse de madeira, para fazer fogo e usar como lenha para cozinhar.
Mesmo compreendendo a necessidade do povo, ela sente tristeza pelas
atitudes de vandalismo. “Eram casas maravilhosas, que cheguei a
visitar, e vê-las daquele jeito causava enorme tristeza”,
descreve.
Quando
havia comícios políticos, era necessário que as duas parceiras,
mais o policial, fossem às ruas para eventuais intervenções. “Em
certa ocasião, estava em pé, assistindo aos fogos, e senti uma
pessoa me puxando pelas pernas da calça. Quando olhei para baixo,
eram Abina e Youssef que haviam se jogado debaixo de um carro e
estavam me arrastando para que eu me protegesse”, relembra. Os tais
“fogos” eram, na realidade, tiros de fuzil AK47 – que ela nunca
havia visto antes. “Quando dispara, aparece um clarão de cor
laranja, parecendo fogos de artifício.”
Difícil
imaginar uma mulher de estatura média para pequena, aparentemente
frágil, em tal cenário de risco. Ela garante: “Aquilo aconteceu
várias vezes”. Situações que parecem inconcebíveis para quem
está ouvindo tudo, sentada em um confortável sofá, numa sala com
ar condicionado, de frente para a Serra do Mar. “Vimos coisas
horríveis”, continua. “Um posto de recenseamento em cima de
lixão, e as pessoas moravam ali... Andávamos extenuadas por entre
vidas cansadas de não ter o que comer, vazias de esperança, e
pisando sobre toda aquela sujeira no chão, ainda que tivéssemos
calçados, mas eles, não.”
Várias
vezes, mesmo com carro de tração nas quatro rodas, viam-se em meio
a atoleiros. Na hora de pedir ajuda, a brasileira, por falar
português, era quem tomava a dianteira para se comunicar com os
moçambicanos. “Isso facilitava me entender com eles, até porque
eles gostam dos brasileiros.” Lembra que tinha de destravar o
mecanismo manual da tração 4X4. Alguns homens próximos trouxeram
pedaços de madeira para colocar sob os pneus, empurrando até o
carro sair.
A
tarde se estende e, naturalmente, abre-se espaço para discorrer
sobre o cotidiano na África. Mesmo em meio à situação caótica,
até conseguia manter cuidados simples com a própria vaidade.
“Cansei de ir para o salão de cabeleireiro em Maputo, tendo que
levar o meu balde ou garrafão com água para lavar o cabelo quando
queria cortar.” Mas, rapidamente, ela volta ao relato da vida de
missionária: “Quando finda uma missão, os observadores
internacionais vêm para se certificar de que o clima de paz está
realmente estabelecido”.
Os
observadores são pessoas de renome na política internacional.
Estiveram lá Bill Clinton, Jimmy Carter, entre outros. Da passagem
de Carter por Moçambique, um evento interessante. Em um ponto da
capital onde o ex-presidente dos Estados Unidos estava, houve uma
briga e o exército indiano, a serviço da ONU, teve que se deslocar
para restabelecer a ordem. Porém, eles não sabiam chegar ao local
do incidente: “Eu conhecia bem a região e fui com a Abina para
ensinar o caminho até a região do conflito. Eu dirigia o jipe e
minha colega ia sentada ao lado. A gente olhava para trás e via
aquele caminhão do exército, cheio de soldados armados nos
seguindo...”
É
assim que Inge resgata aquele momento: como se descrevesse uma cena
de filme de aventura. Palavra por palavra, parece se surpreender com
as próprias lembranças. Ao mesmo tempo em que ri, mostra-se
admirada pelos riscos que passou, e simplifica assim: “Nada daquilo
me dava sensação de medo”. Insisto, querendo saber qual situação
de perigo extremo possa ter experimentado, a ponto de pensar que
poderia morrer. Com firmeza, ela responde: “Nunca, nunca tive essa
ideia”. Inge tinha 45 anos. Como esposa de diplomata, ela poderia
ter viajado e acompanhado o marido por toda a África, sem se
envolver em missões humanitárias. Mas, com a carreira profissional
que deixou no Brasil, jamais abriria mão de um desafio. Depois de
algum tempo, foi contratada pela ONU, recebia um salário – como
ajuda de custo – de US$ 2 mil ao mês. Era o período em que um
dólar, no Brasil, valia R$ 1, início do Plano Real e do governo
Fernando Henrique. O que a atraía, portanto, não era a remuneração.
Fotos,
objetos e lembranças
 |
Card
com quatro fotos: em cima à esquerda Inge em frente de um tanque de
guerra na ilha de Inhaca, à direita a carteira de identificação da
missão Unvavem. Embaixo camiseta usada na missão como Observador
Eleitoral na eleição de Mandela, embaixo integrantes da missão da ONU
localizando minas terrestre |
Na
sequência, as recordações são ilustradas por fotografias e
objetos, expostos sobre a mesa central da sala – prova de que me
aguardava para contar sua história. Sobre a primeira das fotos:
“Aqui é a Ilha de Inhaca. Só era possível chegar de helicóptero
militar, aqueles modelos sem as portas, abertos nas laterais, em que
os passageiros iam presos por cintos de segurança, colados à parede
do helicóptero. Hoje, a ilha é um centro turístico, mas, na época,
não havia nada”. Foram para lá três ou quatro vezes e, numa
delas, aconteceu mais um de tantos incidentes que, após vencidos os
obstáculos, tornaram-se engraçados. O único meio de transporte
possível na ilha era um trator. Detalhe: “O motorista adoeceu e,
quando chegamos, nosso helicóptero foi usado para transportá-lo ao
posto médico em Maputo”.
As
duas ficaram lá, paradas, sem saber o que fazer, mas certas de que
precisavam cumprir a tarefa de visitar os habitantes da ilha em suas
casas. Sempre com bom-humor, Inge prossegue: “A Abina foi logo
dizendo: ‘eu não sei dirigir isso’, mas comentou que já tinha
visto o pai guiar um trator e que só havia duas marchas: frente e
ré”. A joinvilense respondeu: “Também nunca dirigi, mas vamos
fazer esse trator andar”. Abina orientava, Inge executava. Sob
risos e se divertindo entre as recordações, descreve a cena,
movimentando pés e mãos, revivendo aquele momento: “Botei a
primeira marcha e, como só tem dois pedais, um para acelerar e outro
para frear, consegui dirigir o trator”, ela compartilha, com
expressão de orgulho.
Não
são apenas fotos e objetos de arte que Inge mantém em casa até
hoje. Ela preserva verdadeiras relíquias da sua atuação em terras
africanas, como o documento de identificação para a missão Unavem,
a camiseta da missão Onumoz e a de Observador Eleitoral, de 1994.
Há, ainda, as capulanas com as cores da Frelimo e a foto de Joaquim
Chissano, e a do partido Renamo, com a imagem de Afonso Daklama.
Pausa para o café, e voltamos ao assunto que me levara ali. Foi
entre os doces servidos à mesa, que continuei ouvindo as amargas
histórias da África em guerra, da pacificação, das guerrilhas, do
“desminar” e da eleição de Nelson Mandela, contadas por aquela
que poderia ter levado a vida tranquila que sua posição permitia.
Nascida em família tradicional, a menina Inge, filha de Edmundo e
Rosa Doubrawa, estudou no Colégio Bom Jesus, e se fez mulher
desbravadora de conceitos e preconceitos. Em alguns momentos, ouvi
relatos do casal sobre assuntos que mereciam tratamento cauteloso por
conta da posição diplomática que Gil exerceu, como quando
receberam instruções da ONU para que integrantes das missões de
paz não dessem informações a jornalistas: “Se muito do que a
gente dizia e fazia fosse divulgado, poderia prejudicar o país onde
estávamos”.
Na
continuação, falávamos não só de guerra, mas de amor. A todo
momento, Inge usa a primeira pessoa do plural, evidente demonstração
do sentimento de carinho, cumplicidade, respeito e admiração pelo
marido. Gil é um homem mais reservado, que domina sete idiomas,
incluindo o português. Objetiva, Inge se volta para mim e comenta:
“Você não sabe o quanto de história ele conhece e já viveu”.
Deixa
de ser segredo que ele está escrevendo um livro de memórias. Quis
saber mais sobre esse homem, hoje com 84 anos. “Quando o conheci,
ele já era diplomata”, conta Inge. Com a convivência, ela foi
conhecendo a rica história da vida dele: “Gil lutou para que as
colônias de Moçambique, Angola, Guiné Bissau e Cabo Verde se
tornassem independentes”. Filho de pais cabo-verdianos, nascido na
Guiné Bissau, seu pai era administrador na colônia, onde havia
também um governador português. Numa família de condição social
alta, o pai pôde mandar as filhas para estudar em Portugal, como
faria com Gil anos mais tarde.
Porém,
a ida dele não foi exatamente nas mesmas condições tranquilas das
irmãs. Envolvido com o movimento de libertação, ficou sabendo que
seria preso pela Polícia Política Portuguesa (Pide), do governo de
Antonio de Oliveira Salazar. Assim, embarcou em um voo com destino ao
Senegal, onde permaneceu por dois anos, até conseguir bolsa de
estudos para os Estados Unidos, fornecida pela Embaixada Americana em
Dacar, por meio do African American Institut, de Nova York. As
ameaças não intimidaram o jovem, que continuou a luta em favor da
liberdade dos africanos e passou a fazer parte do grupo de
representantes pela independência dos países dependentes de
Portugal.
Gil
morou no Cairo por quatro anos, de onde se deslocava para outros
pontos da Europa e do Oriente, sempre com o mesmo objetivo: a
liberdade do seu povo. Depois, viveu em Estocolmo. Nesses países,
assim como na Inglaterra, angariava fundos para as lutas pela
independência, junto com os comitês locais de apoio contra o
colonialismo.
Povo
alegre, apesar da miséria extrema
Voltando
aos anos da África, Inge compartilha uma percepção tocante sobre
aqueles tempos: “Na África, há uma pobreza extrema que, aqui no
Ocidente, não conseguimos nem imaginar. Ainda assim, eles estão
sempre sorrindo, dançando, e o que mais me chamou a atenção é que
os bebês quase nunca choram amarrados à mãe. Vivem em favelas de
nome ‘musseques’ – sem comparação com as nossas –, onde as
pessoas andam com o pé no barro, dormem no chão sobre esteiras de
palha trançada...”
Inge
conta que, quando as mulheres iam para o hospital dar à luz, tinham
que levar de casa a própria esteira para se deitar, o balde, os
panos e a água. Quando saíam, juntavam tudo e carregavam de volta.
Acrescenta que “lá era normal a mulher ter filho sozinha, sem ser
casada. Dessa forma, ela mostrava que era fértil. A mulher fértil
vale muito para eles. Isso fazia parte da mentalidade de da cultura
africana à época em que vivi lá”.
Ainda
hoje, ela fica indignada: “É inacreditável. A gente não imagina
que isso exista. São situações cruéis, e mesmo assim elas são
felizes”. Inge relembra com admiração a bravura da africana:
“Nunca presenciei, em Moçambique, em meio à população mais
pobre que pudesse existir, uma única mulher se queixando da vida. Em
todas as favelas por onde andei, encontrava as crianças amarradas em
‘capulanas’ ao corpo da mãe. Não se via agressividade dos pais
com as crianças. Cada qual com seus problemas familiares e tragédias
pessoais, ainda assim um país de gente alegre”, conta. “Só
trabalhei na cidade, mas o que vi foram crianças magras,
desnutridas, com aqueles olhos enormes saltados dos rostos magros,
brincando com bolotas de casca de coco como se fossem bolas de
futebol. Imagine como devem ser as que vivem no interior...”
De
outra parte, guarda a imagem de um povo submisso à pobreza e ao
domínio, imerso de um sistema colonial. Sofriam com as guerrilhas,
sempre acostumados a servir: primeiro a um, depois a quem viesse a
assumir o governo do país. Sem conhecer outra realidade, viam aquilo
como normal. “Nós é que tínhamos que reconhecer e fazê-los
perceberem que deviam mudar de comportamento”, reflete Inge. Não
se viam brigas, violência ou crimes. “Mesmo entre tantas
guerrilhas, entre eles próprios, havia paz”, observa. O marido
traz um registro pesado do que viu na África: “As pessoas não
podiam plantar, porque os campos eram minados. Quantos perderam perna
por andar sobre aqueles campos?”, e completa: “É horrível ver
gente mutilada por todos os lados, sem saber quando e onde acontecerá
o próximo acidente”.
Os
anos seguidos entre cenas de miséria não endureceram o olhar de
quem estava por lá. Inge conta que ela e Abina sempre conversavam
sobre isso, quando viam, por exemplo, garotos com uma só perna
jogando bola. “Isso que eles mostram”, referindo-se aos
documentários reproduzidos pela televisão, “é assim mesmo, uma
miséria que dói”. E faz um elogio ao Médicos Sem Fronteiras,
“pessoas maravilhosas, voluntários que se dedicam a trabalhar para
amenizar, o quanto podem, o sofrimento daqueles indivíduos”. Inge
segue discorrendo sobre fatos ainda vívidos na memória: “Em
certos dias, via-se tanta miséria que nós pensávamos: ‘não é
possível que, com tudo isso, essas pessoas sejam capazes de rir,
ainda brincam, namoram, fazem filho no meio de tanta desgraça”.
Passagem
por Johannesburgo
Antes
de começar a missão em Moçambique, Inge foi designada para
auxiliar os colegas em Johannesburgo, a maior cidade da África do
Sul, dando apoio à continuidade da organização do período
pré-eleitoral. Pela primeira vez, ela confessa: “Passei por
situações em que senti medo”. Em Johannesburgo, no ano de 1993,
quando já se vivia o fim do apartheid, o clima era tenso. Em vista
dos problemas raciais, os enviados da ONU eram orientados a
frequentar lugares públicos onde, antes, só negros ou só brancos
podiam entrar. Tudo como forma de trazer a normalidade da convivência
entre a população.
Seguindo
essas orientações, Inge foi junto de Manoel, cabo-verdiano, almoçar
num clube de críquete, um jogo inglês parecido com o beisebol,
comum na África do Sul. Era um clube fechado, frequentado apenas por
pessoas de cor branca, da elite sul-africana, ricos e poderosos. Um
ambiente onde, antes, não se cogitava a presença de negros. Ela
admite: “Fomos lá para afrontar. Os olhares que colocavam sobre
nós eram aterrorizantes, pareciam dizer: ‘se pudéssemos,
matávamos vocês’”. O preconceito se reproduzia entre as duas
partes. Manoel dizia: “Agora nós podemos frequentar este lugar,
vamos entrar...”. No restaurante, como em tantos outros, havia
negros trabalhando como garçons, que relutavam em servi-los. O
garçom negro demonstrava mais resistência em atender à mesa. Mesmo
quando Manoel o chamava, demonstrava desagrado, porque ele estava
acompanhado de uma mulher branca. “No caso, eu”, lembra Inge.
Ela
relata a situação de medo e o perigo que passou em Johannesburgo.
Nessa época, havia conflitos nas ruas e, para avisar a população
de se proteger, soavam sirenes. Certo dia, estava andando, quando viu
um grupo de negros correndo com pedaços de madeira e armas branca na
mão. Eles gritavam e batiam no que encontravam pela frente. Com
aquele som estridente do alerta disparado, a situação era
“aterrorizante”, diz. “Eu me vi obrigada a entrar em uma loja,
e a dona, de imediato, sem perguntar nada, me jogou no chão para me
esconder e me proteger”, relembra Inge. E recorda de um momento
bonito, como contraponto, quando o motorista que servia a equipe, um
homem negro, da raça zulu, os convidou a visitar Soweto, um bairro
de negros, para tomar café com a família dele. “Eu disse que meu
marido também era negro e fui muito bem recebida”, relata.
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Card
com duas fotos na Ilha de Inhaca: em cima, à esquerda, Abina de roupa azul sentada num
banco de madeira azul. Inge de calça comprida azul e jaleco branco.
Embaixo do lado direito, Youssef com uniforme de cor cáqui ao lado de
Inge de calça jeans e jaleco branco. Nos fundos aparece uma mulher
africana de roupas vermelha e branca. Em ambas as fotos vê-se o céu
azul, chão sem pavimentação e árvores. |
Guerra
civil em Angola
Outra
experiência marcante ocorreu em Angola. “Em meados de 1995, entrei
na Ucah, organização de apoio da ONU, de desminagem e área de
assistência humanitária, que fazia a desmilitarização dos
guerrilheiros”. Essas pessoas não tinham registros de
identificação e precisavam entregar as armas para receber
documentos. Enquanto Gil ficava na capital, Luanda, Inge viajava para
o interior e, a cada duas ou três semanas, voltava para encontrá-lo.
A guerra civil em Angola iniciou-se em 1975, logo após a
independência, e perdurou até 2002. O Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a
Independência Total de Angola (Unita) lutavam pelo poder. A vitória
foi do MPLA.
Nessa
missão, de nome Unavem, Inge tinha que recolher as armas dos
soldados da Unita. Eram áreas perigosas, onde havia a mosca tsé-tsé.
Foram seis meses, vendo miséria por todo lado: “A guerra devasta
um país”. Mais do que qualquer mal ou conflito, o que mais
assustava Inge em Angola era a mosca. Conhecido como a mosca do sono,
esse inseto, quando pica, deixa a pessoa em estado letárgico até a
morte. Inge conheceu um italiano e recorda, com tristeza, o
sofrimento dele após contrair a doença. Os guerrilheiros vão para
os campos de conflito com toda a família, mulheres e filhos. Elas
lavam e cozinham para eles. Se mudam de local, a família também
muda. “É por isso que vemos crianças sendo atendidas nos campos
de guerra, junto com os guerrilheiros”, relata. Sobre a tarefa de
desmilitarização em campo, Inge descreve como era esse novo
ambiente: “Meus companheiros de trabalho eram um brasileiro e um
italiano. Dormíamos em barracas abertas nas laterais, fizesse calor
ou chuva”.
O
clima em Angola é quente e úmido, durante todo o ano. No inverno,
acontece o cacimbo, um período de invernagem com neblina grossa. As
camas eram de acampamento militar, sem colchão, apenas com uma lona
que se abria. Era a chamada cama de campanha. O chuveiro era
improvisado, feito com furos em uma lata, e as necessidades
fisiológicas eram feitas em banheiro turco.
A
vida nesse lugar implicava saber lidar com a impotência diante da
população e com os problemas dos colegas em missão. Nem todos que
trabalham na área humanitária reagem da mesma forma e, em situações
extremas, alguns são capazes de dar cabo da própria vida. “Soube
que uma pessoa se jogou debaixo de um trem e outra deu um tiro na
própria cabeça”, revela. “Outro caso grave foi o de uma moça
do Sri Lanka. Ela teve um desequilíbrio nervoso e tirou toda a roupa
do corpo. Como nós duas conversávamos muito, acabei sendo o seu
único contato. Ela chamava por mim e, chorando, dizia que não
queria voltar, porque achava que ia apanhar do marido.”
Inge
foi transferida para um órgão chamado Travel por mais seis meses,
para substituir o responsável que havia voltado ao país de origem,
Indonésia, por problemas de saúde. Era um órgão que cuidava das
passagens dos oficiais das Nações Unidas, quando repatriados, e da
acomodação para os que chegavam. Qualquer pessoa em missão que
entrasse ou saísse de Luanda precisava passar pelo serviço, que
funcionava dentro de um contêiner. Nesse cargo, ocorreu uma situação
que custou uma repreensão à brasileira. Perto de uma ponte, um
carro passou por cima de uma mina, que explodiu, matando um
jornalista inglês, um militar sobrinho do rei da Jordânia, o
motorista e o intérprete que viajava com eles. Como responsável
pelo setor, que fazia a liberação de passagens, Inge recebeu do rei
da Jordânia uma correspondência, avisando que estava enviando um
avião para buscar os restos mortais do sobrinho.
Como
se revivesse a cena, segue a narrativa de forma acelerada: “Era uma
quinta-feira e ele avisara que ia chegar no sábado, véspera da
Páscoa, sendo que Sexta-feira Santa seria feriado. Como liberar o
corpo em tão pouco tempo?”. Durante todo o dia, ela foi às
repartições em busca dos funcionários angolanos, responsáveis por
conseguir a liberação, mas, ao percorrer os setores burocráticos,
só encontrava obstáculos. Uns diziam que não podiam fazer nada
porque faltava luz, outros alegavam que não havia máquina de
escrever, e outros tantos informavam que a documentação para
despachar o corpo ia demorar uma semana.
O
fato de falar português facilitava a comunicação e ela ia pegando
as dicas para alcançar seu propósito. Por fim, conseguiu um médico
para a autópsia. Faltava, por último, a assinatura do diretor do
órgão responsável por liberar o translado do corpo. Em torno das 9
da noite, já com o prazo se esgotando, Inge chamou o marido e foram
atrás do tal diretor. “Entramos no jipe, e eu ia me comunicando
pelo rádio com a Unavem, para que soubessem por onde eu andava".
A informação se fazia necessária, segundo Inge, porque passariam
por dentro de favelas ou lugares sem luz até chegar ao local e
descobrir onde o homem morava. Num prédio escuro, ela subiu. Em uma
mão, levava o papel para colher a assinatura e, na outra, uma
lanterna. O responsável assinou os papéis, sem problema.
Quando
tudo parecia resolvido e ela estava pronta para voltar, uma surpresa.
“Cheguei lá embaixo e dei de encontro com um macaco. Arisco e
bravo, preso a uma coleira, fazia as vezes de guardião do prédio.”
Como fazer o animal sair dali? Gritou para o marido que fosse para
uma entrada ao lado. Desse jeito, atrairia o macaco para lá. Rindo,
Gil acrescenta que ia da abertura da porta para a janela: “Assim,
na fúria de me atacar, o macaco se enroscava na pilastra em que
estava preso”. Sem pensar, Inge fugiu pela porta pela qual entrou.
Gil havia chamado a polícia das Nações Unidas para ajudar, mas
quando chegaram, já estava fora de perigo. “Dali seguimos para
fora da favela e fomos até Viana, a 20 quilômetros de Luanda, para
deixar o documento e despachar o corpo no dia seguinte. O avião
chegou e o corpo foi.”
Contada
a história, resume: “Depois, recebi uma repreensão do chefe geral
das Nações Unidas porque coloquei não só a minha vida em perigo,
mas também a do Gil, que era diretor”. Eu, então, completei: “Mas
a missão foi cumprida, e por uma brasileira”.
Cargo
burocrático e menção honrosa
Passado
algum tempo, recebeu convite para assumir um cargo administrativo.
Consistia em prestar contas do gasto de combustível entre as Nações
Unidas e a Sonangol, estatal do ramo petrolífero, responsável pela
exploração do gás natural de Angola. “Significava a
responsabilidade de administrar cerca de US$ 1 milhão gastos por dia
pela ONU com combustível, aviões, carros, gás, lubrificantes de
armas e toda a eletricidade na missão”, explica. “Era necessário
comprovar o uso com notas fiscais e fazer relatórios sobre o destino
desses valores: quem usou, que batalhão, no que foi consumido”,
detalha. Por esse trabalho, recebeu menção honrosa da qual se
orgulha até hoje, e chegou a ser convidada para a mesma função a
ser exercida no Saara Ocidental, mas recusou. “Meu pai já não
estava bem e eu desisti. Com o fim do contrato semestral, decidi
voltar para o Brasil.”
Mesmo
com a satisfação pela nova experiência nessa posição – em um
escritório montado dentro de um contêiner, sem janelas –, não há
dúvida de que o mais importante foram as ações humanitárias. “O
trabalho na comunidade era mais apaixonante. Sentir-me útil para as
pessoas era muito mais importante do que trabalhar na parte
administrativa”, diz. De acordo com as exigências da ONU, nesse
trabalho remunerado, mas com valor suficiente apenas para ajuda de
custo, havia uma jornada de seis dias por semana a cumprir, com folga
aos domingos. Administradora por natureza, ela tratou de organizar o
tempo a seu favor “A cada três meses de trabalho, eu conseguia
juntar sete dias de folga. Aproveitava para viajar e conhecer outros
países da África”, revela. Foram oito anos vivendo na África. E
ela garante que faria tudo de novo. Apenas uma ressalva: “Se
voltasse hoje, talvez tivesse mais preocupação com as doenças”.
Mesmo com a tristeza que vivenciou, garante que tudo foi compensador.
Entre
as lembranças marcantes, cita o prazer de conhecer e jantar com
Graça Machel, ativista política dos direitos humanos de Moçambique,
que foi primeira-dama daquele país e depois, esposa de Mandela.
Conta também que se sentavam à mesa de Joaquim Chissano, presidente
de Moçambique, pelas relações diplomáticas do marido. Não menos
emocionante foi fazer parte, como contratada da ONU, dos preparativos
da recepção à princesa Diana, quando a inglesa fez uma visita
humanitária a Angola, em janeiro de 1977. Mesmo não podendo
participar do jantar oferecido à princesa, honraria que coube
somente ao Gil, como membro da diretoria da ONU, estar entre os
organizadores para os quais ela sorriu e a quem cumprimentou com
aceno de mãos são registros inesquecíveis.