quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

NELLY CORRÊA - Uma vida entre leques e cores

 

Dona Nelly em frente de seis telas e do leque pintado por ela expostos na sala de sua casa. Ela usa blusa estampada cores neutras, cabelos curtos e óculos de grau. No card está escrito o título do post. Foto de Raquel Ramos. Arte de Letícia Rieper.

Foi no festivo Dia do Centenário da cidade, em 09 de março de 1951, que Holnelia Isabel Rubin, hoje Corrêa, com apenas 15 anos, chegou a Joinville. Setenta anos depois, Dona Nelly, como é chamada na intimidade por amigos e familiares, presenteia nossos leitores com uma história de arte e graça feita pelas próprias mãos.

Dona Nelly, foi uma, entre tantas mulheres, que integrou uma classe de trabalhadoras/artistas que, entre as décadas de 40 a 60, trabalhavam para a fábrica Leques Minueto, uma empresa da Cia Hansen Industrial. Seus produtos marcaram uma era, proporcionaram beleza e glamour para as mulheres da sociedade joinvilense e até além dos limites do município.

As lembranças brotam da memória de Nelly com absoluta lucidez. Ela conta que, chegando em Joinville, foi para a rua do Príncipe, onde se realizavam as festividades do Centenário. Ficou parada em frente à Farmácia Minâncora, esquina com a rua das Palmeiras. Daquele ponto, assistiu aos desfiles comemorativos do dia. Não esquece da emoção de ver passar, em um carro alegórico a bela Rainha do Centenário, Jutta Guttschow, (que com o casamento tornou-se Wendel). Por ali passaram os desfiles de bicicletas e aquele um dia seria seu marido, o jovem Osmar Soter Corrêa, representando a Sociedade Esportiva e Recreativa União Palmeiras.

A primeira casa em que Nelly residiu, ficava na rua Eugenio Moreira, zona sul de Joinville. A fábrica de leques  era no mesmo endereço, porém, na esquina com a rua Bahia. Certamente essa proximidade favoreceu o desenrolar de toda a trajetória.

Por indicação de uma vizinha, a jovem Nelly teve conhecimento do trabalho na pintura de leques. Foi ela quem me deu a primeira orientação: "Procura o Senhor Julio Moeller, porque é ele quem faz as contratações", conta Nelly. E assim, acompanhada da mãe, em vista da pouca idade, foram até lá. Embora o trajeto fosse pequeno, era sempre feito pelas duas, mãe e filha, por cuidado e zelo.

Isso foi o início de tudo. Por ser menor de idade, ficava separada das outras profissionais que trabalhavam na montagem dos leques. "No começo eu não recebia nada pelo meu trabalho", diz ela. "Eu ficava dentro da fábrica, mas como aprendiz de pintura". A professora era Lourdes Hardt, a quem ela delega a honraria de todo aprendizado recebido. "Ela era muito enérgica e exigente, mas devo tudo o que aprendi a ela" e, para ilustrar sua admiração, completa: "Ela tinha mãos de fada". 

Com a prática e desenvoltura adquirida, Nelly passou a levar trabalho para executar em casa. Foi a partir daí que começou a ser remunerada pelo serviço que fazia. Ia até a fábrica e recebia o talho do tecido de seda, a tinta a óleo e o diluente para fazer a mistura. "A Dona Lourdes me entregava o tecido moldado, no tamanho e formato do leque. já com o motivo desenhado por ela com uma caneta de tina branca". Em casa, fixava a seda, com alfinetes em cima de folha de papelão sobre a mesa e fazia a pintura. Depois de prontos, devolvia para a professora e então os tecidos eram colados na paleta. "Mas isso era um serviço feito pela fábrica, eu só pintava", acrescenta Nelly.

Na época, o leque era um objeto totalmente feminino e sofisticado. "Era um período em que as mulheres se arrumavam até para ir à missa, usando luvas e portando cada uma o seu leque", relembra. Nelly perdeu a conta de quantos leques pintou. Hoje, uma dessas peças, pintada em 1952, esta pendurada como decoração na parede de sua casa.

Foto do leque exposto em quadro de moldura de madeira. Cor preta com margaridas e rosa. Ao lado a caixa de papelão onde era guardada a peça. Foto Raquel Ramos

Passado algum tempo, com 17 anos, Nelly começou a namorar e foi pedida em casamento por Osmar. Orgulha-se em dizer que comprou todo o enxoval com o dinheiro recebido pela pintura de leques. Ela comprava peças, como colcha, jogos de toalha, toalhas de mesa. "Eu mesma as pintava", afirma.

 

Inspiração para amores e poemas

O período da produção de leques faz parte da história de uma das maiores indústrias do Brasil, a João Hansen Junior e Cia, hoje a empresa Tubos e Conexões Tigre, construída por João Hansen Junior, nos idos de 1940. Enfrentou duros períodos de guerra, racionamentos de energia elétrica e de gasolina e se consolidou no cenário empresarial nas décadas seguintes.

Hoje, essas informações estão digitalizadas no site da empresa. Porém há um Edição Especial de um Informativo Hansen, um documento histórico. A edição Festa das Medalhas - 1991 trouxe a história do fundador da empresa e o assunto da fábrica de leques divulgado de forma impressa.

O texto, baseado em pesquisa biográfica, foi escrito por Mila Ramos. Entre tantas informações pessoais, familiares e da empresa, ela cita, que o Senhor João "perspicaz e de olho no futuro da Tigre, sentiu, logo que evoluir era diversificar". E faz a citação, embora sucinta, de que "...depois foram os leques, também de plástico e pintados à mão".

Foi nos manuscritos desse trabalho, rascunhados por Mila, escritora e poeta, que encontrei declarado o sentimento de amor de quem viveu a era dos leques. Ela escreve:

 

Card com a letra da poesia de Mila Ramos transcrita do final do texto.

Mila usa a caneta; Nelly, os pincéis. A mesma poesia em linguagens diferentes, vividos em dias de glória. A arte dessas pintoras, realizavam os sonhos das damas da sociedade. As mulheres usavam seus leques decorados, um complemento indispensável do vestuário, e, por trás desse adereço trocavam olhares furtivos como forma de sedução. Atualmente, os leques continuam sendo objetos de luxo, embora com outro sentido: tornaram-se objetos raros, porém sem perder a majestade.

Com o casamento, Nelly parou de pintar. "Naquele tempo", comenta ela, não com rancor, e sim como mero relato, "o meu marido não permitia que eu trabalhasse fora". Além disso, os três filhos a absorviam completamente. Bem mais tarde, com a mudança dos tempos e filhos crescidos, voltou à atividade, mas escolheu frequentar aulas de pintura em porcelana. Isso foi na década de 70, na Casa da Cultura, com as professoras Rita Kaesemodel e Edith Wetzel.

O crescimento pessoal na arte dos pincéis continuou. Incentivada pela professora Emília Merklen, passou a se dedicar à pintura em tela. "Bem diferente dos leves tecidos dos leques, a tela tem textura firme", comenta. Com orgulho, conta que já expôs quadros no Bar e Restaurante Parapluie, que funcionava na rua Visconde de Taunay, nos anos 90. A partir daí se viu reconhecida pela família e lembra as palavras ditas por Dona Líbia, sua mãe: "Agora minha filha está fazendo o que realmente gosta".

Durante toda a tarde em que conversamos, a frase "Eu adoro pintar" foi a mais repetida. Ela ainda possui as caixas com tintas importadas, tanto para pintura em porcelana quanto para tela. Mostra o último quadro feito em janeiro/2020. Assim como todos, neste ano de pandemia, precisou se adaptar e muitas mudanças aconteceram, inclusive de residência. Agora, de casa nova, pretende voltar a pintar.

Dona Nelly em frente a uma estante com enfeites do escritório de sua casa. Segura a caixa de tintas. Foto Raquel Ramos

Joinville, cidade de muitos artistas.

O assunto trouxe à tona o nome de outras pintoras de leques. Sandra Regina Schatzmann revela que sua mãe, Norma Schatzmann, falecida em 2010, também era pintora de leques. Segundo Sandra, os leques eram ofertados para uma companhia aérea ou marítima. "Posso estar enganada, mas lembro que ela pintava leques com motivos de navios". Da mesma forma, Gert Fischer recorda dos leques pintados por sua irmã Ragnit Eugênia Fischer quando tinha 14 anos. Ele possui dois exemplares guardados como relíquias em sua residência.

A historiadora Raquel S.Thiago relembra que a sala da casa de sua mãe, Elin Veras de S.Thiago, vivia com panos e tintas espalhados sobre a mesa. "Isso foi na década de 1950, lembro bem", comenta Raquel enquanto lamenta a morte precoce da mãe com apenas 38 anos. Loepper Vernon, morou quando criança, por volta de 1956, numa casa da rua Rio Grande do Sul, perto da Hansen. "Lá, o trabalho tinha características de serviço autônomo in home". Isso mostra que o homme office, do novo normal em tempo de pandemia, não tem nada de novo.

O processo de apanha-entrega, continua Loepper, era de bicicleta (Göricke). "Além dos leques, lembro dos bordados feitos nesse regime e comercializados pelo artista plástico Eugenio Colin (1916-2005)". Seu Eugênio mantinha um ateliê na própria residência, mas também comercializava os produtos de porta em porta.

Tem-se conhecimento de que as civilizações, desde a Antiguidade, fizeram uso dos leques como símbolo de poder. Em épocas e estilos diferentes, as mulheres foram retratadas por Renoir, Gauguin, entre outros, segurando leques. Porém, a citação atribuída à Madame de Staël (1766-1817), romancista e ensaísta francesa, de que "uma dama sem leque é como um nobre sem espada" é a mais pura representação da elite europeia e do real significado do valor atribuído aos leques.

Para Joinville, é uma honra ter na pessoa da Dona Nelly uma representante de todas as pintoras de leques da história da cidade.


Dona Nelly na exposição do Bar Parapluie. Usa roupa em tons pastéis e está em frente a uma tela de vaso de flores caído. Foto do arquivo pessoal.

Foto arquivo pessoal em preto branco do dia do seu casamento com o Sr Osmar. Usa vestido branco, véu, grinalda, bouquet de flores na mão. Ele usa camisa e lenço branco no bolso do terno preto.

Texto da poesia

"E os leques pintado à mão...

Ah! Os leques...

Dá-me, de volta a elegância de um leque,

daqueles de renda

pintados à mão...

Quero criar, outra vez

a brisa e o tempo

do abano e recato

buscando paixão.

Eu quero olhar

meu passado espiado,

escondido,

meu riso retido

nas rendas, nas cores,

nas hastes, nas flores,

no vento, a saudade,

de um leque antigo

pintado à mão".  Mila Ramos

 

Texto originalmente publicado na REVI Digital - Ielusc

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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O colorido Egito - A experiência em uma aldeia de beduínos

 

Criança na aldeia de beduinos. Roupas coloridas e estampadas em tons de rosa e turbante roxo. Voltada para a câmera, mostra as mãos fechadas com os dedos indicador e médio entreabertos na altura dos olhos realçado a cor azul acinzentada.

 

A foto é resultado de uma visita feita a uma aldeia de beduínos na região de Hurghada. Das fotos que fiz no Egito está é uma das que mais me encanta.

As crianças beduínas e seu colorido são um atrativo que até parece proposital. Mesmo que elas te vejam como um veículo para ganhar alguma coisa, em geral recebem dos visitantes lanches, balas e sucos, elas mostram inocência, são simpáticas e interagem com você. Fora que ainda te possibilitam tirar lindas fotos.

Este é o multicolorido Egito. Um aspecto pouco explorado por sites de viagens, que naturalmente, pelo grau de importância dão total destaque para os monumentos históricos, porém incolores.

Não dá para fugir da realidade que esse povo vive. A aldeia visitada é daquelas preparadas para receber turista, tal qual nossas aldeias indígenas, no Amazonas. Vida dura, sacrificada, sem estrutura. Me indago sobre a carência de uma verdadeira localizada longe e num mundo ao qual não temos acesso.

Criança. Foto lateral sem expor o rosto. Turbante vermelho e branco, roupa amarela com detalhes verde no capuz e no punho

Criança. De pé virada para a câmera. Usa um macacão rosa, casaco azul e capuz laranjado com detalhes em flores. Segura duas maças vermelhas na mão.

Selfie com seis crianças. Elas sorriem e usam roupas  e turbantes coloridos.

A chegada a Hurghada trouxe cor, luz, exuberância para a viagem. O encontro com o Mar Vermelho acontece sob o efeito de uma sensação fascinante. Para os adeptos do fundo do mar com seus peixes coloridos e corais, a cidade balneário é uma das mais cobiçadas da região. Cursos de mergulhos e passeios de barco estão à disposição com várias opções.

Preferi ver a vida sobre a terra. A naturalidade do trânsito de camelos pelas ruas centrais e seus condutores usando telefone celular. Tomar um chá, ver o homem egípcio sempre próximo do fogo em brasa a ativar um “sheesha”- o tão conhecido narguilê.

Portal da cidade de Hurghada. Rua Central contornada por tamareiras. Noite. Luzes acesas.


Homem caminha com celular na mão e puxando um camelo branco com sela e enfeites multicoloridos.
 

Em vista de uma oportunidade única, não dá para desperdiçar e aproveitar o belíssimo espetáculo que a paisagem do deserto oferece. Visto apenas em filme, sejam os perigos dele ou romantizado, a possibilidade de me sentir a rainha do deserto, com direito a turbante egípcio, foi bem aproveitada.

Eu usando camiseta preta escrito nas costas o nome do blog superlinda na cor laranja, turbante branco e vermelho. Ao fundo, perdendo de vista,  a areia de tom nude do deserto.

O povo egípcio é hospitaleiro e quando você demonstra interesse em conhecer a cultura dele, responde com imensa gratidão. Aquilo que inicialmente parece uma simples venda de produto turístico, no final te recompensa pelo aprendizado e da cultura adquirida.

Mulheres de mãos habilidosas ensinam – embora você não vá aprender nunca - como fazer o pão. Amassa, bate, estica, roda, joga pro alto e larga sobre uma chapa quente. Sentada no chão de terra batida, a mulher, de idade impossível de ser calculada,  executa a tarefa com maestria. Olha para todos os lados, sem perder o ponto, e serve o pão cheiroso aos visitantes.

Ao final assistir um show ao ar livre, sob um céu estupidamente negro, é um espetáculo só para quem brinca de estar perdido no deserto. A dança dos Dervixer Rodopiantes, uma viagem mística através da mente e do amor que leva à perfeição encanta a todos.

Embora as mulheres egípcias não se exponham em público, elas usam roupas muito coloridas sobre o hijabe (roupa preta). Carregam seus filhos enquanto comandam o passeio de camelo e têm os olhos muito atentos.


Mulher puxando um camelo. Ela usa vestido comprido de cor vermelho com estampa branca e por cima usa a veste e turbante preto. Rosto coberto mostrando apenas os olhos.

Mulher sentada no chão fazendo o pão. Usa vestido preto com estampa verde. Um braço levantado em pose para a foto e do lado esquerdo colocado sobre o meu ombro que estou agachada ao lado dela. Uso calça comprida bege, jaqueta laranja e turbante vermelho e branco. A tenda tem paredes de palha.


Mulher puxando um camelo. Ela usa vestido de fundo preto estampas grandes em vermelho, sobre ele as vestes pretas, só os olhos ficam a mostra.

Homem que faz a dança rodopiante. Usa roupas saias rodadas e compridas cores preta, branca, amarela e verde, Camisa branca e colete igual a saia. Turbante e nas mãos objetos redondos e grandes de cor vermelho usados na coreografia.


Homem de perfil sentado no chão, pernas encolhidas, braços apoiados nos joelhos. Calças branca, jaqueta bege escuro, turbante vermelho e branco. A sua frente carvão ativado, protegido por um meio muro de pedras e na frente deste os narguiles.


Fotos de Raquel Ramos

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Roteiro de viagem Shaimaa Hassan - Menphis Tour

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

A 115ª Flag do SuperLinda veio da Líbia

Card com sobreposição de imagens. Embaixo a bandeira da Líbia nas cores vermelho, preto e verde, de cima para baixo, de listras em largura irregulares. Ao centro uma lua crescente e um estrela de cinco pontas, ambos na cor branca. Sobre ela o print do registro da flag do Superlinda, no site Flagcounter, de cor branca com gráficos de cor azul. Na parte superior, lado esquerdo, a bandeira do Brasil e lado direito a bandeira da Líbia.

 

É da Líbia a 115ª Flag do SuperLinda. 

Localizada no norte do continente africano. A base da economia é a extração e exportação do petróleo. Possui uma das melhores rendas per capita do continente, mas isso não reflete na qualidade de vida da sua população. As classes menos favorecidas sofrem com a falta de alimentos dada a restrição de importações. A capital é Trípoli e seu território limita-se com o Mar Mediterrâneo, Tunísia, Argélia, Níger, Chade, Sudão e o Egito. Fonte

De tudo o que se lê sobre este país, curiosidades, turismo, o que mais se diz é, justamente, o pouco se sabe. Apesar de dividir fronteira com países turísticos como a Tunísia e o Egito, a Líbia é um mistério e pouco visitado pelos ocidentais.

Porém, os mais audaciosos, que se embrenham pelo desconhecido, relatam a extraordinária beleza e história riquíssima. Recomendo a leitura do blog Alma de Viajante, de Felipe Morato Gomes, de onde tiro a frase: “As paisagens mais belas do Sahara estão ali, no chamado 'mar de areia' líbio. Esse detalhe me a atenção por conhecer o Sahara do Egito, de imensa beleza. Se existe um mais lindo, então deve ser estarrecedor.

 

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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Viagem ao Egito - O Cairo - Impressões de uma turista-repórter


Avenida de tamareiras que contorna o rio Nilo. Final de tarde com por do sol aos fundos a cidade do Cairo. Foto: Raquel Ramos

 


Este é um texto publicado originariamente na REVI Revista Digital da Faculdade de Jornalismo - Ielusc - link

O Cairo é uma cidade de contrastes. É linda. É poluída. É encantadoramente congestionada, não só pelo trânsito. É preciso comprendê-la antes de julgá-la.  Ela tem o barulho ensurdecedor do idioma árabe. Forte, alto e masculino contrabalançado pelo silêncio das vozes femininas abafadas sob o Niqab, véu de cor preta que cobrem seus rostos.

Desprenda-se do conceito de cidades europeias ou americanas e embrenhe-se num mundo cultural fascinante. Só assim será possível entender a cidade. A cultura é alicerçada na religião muçulmana e por isso mesmo complexa. O tempo está sempre submetido ao horário das orações. É estranho até que se compreenda a dinâmica, porque ao final tudo funciona.

A chegada

Após 36 horas de viagem entre aeroportos e voos, finalmente o avião iniciou as manobras de aterrissagem. Era madrugada, pouco se via lá de cima, apenas luzes. Muitas luzes que anunciavam a chegada ao Cairo, capital do Egito, dando a dimensão da megalópole que encontraria.

Comumente, antes de uma viagem, costumo ler e estudar sobre o país e cidade de destino. Se, com essa prática, as surpresas acontecem, no caso do Cairo, a falta dela poderia ser desastrosa. Lidas e relidas as instruções, ainda assim, estava ansiosa diante do desconhecido país. A tensão para obter o visto de entrada, ali mesmo no aeroporto, era só uma das minhas preocupações. Embora Shaimaa Hassan, agente de viagem da Menphis Tour, tenha garantido que aquele era um procedimento normal, sabemos que esta é uma burocracia que se obtém antes de sair do seu país.

Por entre os corredores do aeroporto, já olhando os indecifráveis letreiros escritos em árabe, avistei um homem com a famosa plaquinha com o meu nome. Alguém me esperava e falava espanhol. Um alívio. Foi a primeira vez que vi funcionários de agencia de turismo esperando o passageiro na parte interna,  antes da imigração e esteira de retirada das malas.

Foi então que entendi: era ele quem iria fazer o encaminhamento do visto. Como previamente avisada, já tinha à mão o meu documento e USD 25 para pagamento da taxa. O homem se dirigiu a um guichê e voltou com o passaporte carimbado, sem nenhum problema, como Shaimaa havia dito várias vezes. Partimos então para o serviço de imigração, já na companhia de mais dois casais brasileiros, que se juntaram para o mesmo fim.

Tudo resolvido, malas na mão, o que é sempre um alívio, ainda no aeroporto, fomos para o primeiro câmbio pela moeda daquele país. A nota de Libra Egipícia estampada com a Esfinge de Gize, pelo Central Bank of Egipty, deu-me a certeza de estar em solo egípicio. Outra providencia tomada ali mesmo, foi a compra de um chip de celular local, para uso de internet fora dos ambientes de wi-fi.

Hotel

Dentro da van com destino ao hotel, o trajeto foi feito por uma avenida contornada de tamareiras. Pela primeira vez eu via a árvore que produz a tâmara. Um fruto conhecido por nós somente embalado em caixas de papelão na época de Natal. Uma mistura de sentimentos tomou conta de mim, diante de tanta beleza, ainda assim o novo, o inusitado, o desconhecido me causava insegurança. Essa sensação se acentuou na chegada ao hotel, com a passagem por barreiras de segurança e detectores de metal.

Curiosamente, Shaimaa, uma egípcia que estudou e fala fluentemente o português, comentou, alguns dias depois, que tudo aquilo era para a nossa segurança. Acrescentou que, que após colocaram policiais armados, seu povo se sentia livre para caminhar pelas ruas. Passei a olhar aquilo de maneira diferente. Não sei como, mas o calor humano daqueles homens barulhentos e seus sons em erres emitidos da garganta, conseguem, como que por mágica, parecer realmente nos proteger. Tudo o que se fala sobre o assédio masculino, não vi.

A escolha por se hospedar no Grand Nile Hotel, no centro do Cairo, diferente da oferta inicial de ir para Gizé, com vista para as pirâmides, foi acertada. Deparar-se com o Nilo refletido pelas luzes a sua volta foi fundamental para aceitar a triste realidade de um rio poluído quando encontrado à luz do dia. Ainda assim, mesmo que não o vejamos como gostaríamos, ele é grandioso.

O Grand Nile tem uma imponente entrada. Mais suntuosa do que muitos hotéis em que já me hospedei e com o valor da diária menor do que muitas pousadas que estamos acostumados a pagar no Brasil. O café da manhã é impecável. O grandioso saguão e seus imensos lustres repletos de escrivaninhas, móveis e sofás espalhados decorativamante.

Incomodativo e desagradável é o cheiro de cigarro impregnado em ambientes internos, inclusive dentro dos quartos dos hotéis, de uma forma geral. O fumo é uma prática habitual entre os homens egípcios e não há restrição de local para fumar, exceção feita aos ambientes de refeições.  Nos lounges, os narguiles estão disponíveis para todos. Há que se adaptar.

A opção da viagem durante o inverno egípcio foi oportuna. Era janeiro, quando a temperatura média varia entre 15 e 20 graus. Sol, vento e friozinho à noite. Não faltou disposição para as longas caminhadas muito bem alertadas pelo ortopedista, referindo-se aos meus joelhos já desgastados. Sem dor e sem cansaço, além do normal, o que havia mesmo era muita expectativa e ansiedade pelos passeios aos monumentos seculares que estavam por vir.  Porém a história deixo para os especialistas, arqueólogos, historiadores e tantos materiais disponíveis para consulta. Tudo o que relato foi o que vi e o que senti.

Salão de café do Hotel. O chef do buffet em frente ao aparador, colunas de redondas de granitos, aos fundos janelões de frente para o rio Nilo, um grande lustre de cristal no centro. Foto: Raquel Ramos

 

A cidade do Cairo 

Essa bela e tumultuada capital tem uma desorganização organizada própria dela. Ela tem a cor nude da areia do deserto. A discrição das mulheres que só expõem os olhos e escondem o corpo sob vestes compridas, mas não as subestimem por esta aparência. É cultural e uma opção delas. Nas vitrines de roupas femininas, o que se vê são trajes sensuais e muito brilho. Da mesma forma, mostram ao mundo ocidental, que o uso das vestes compridas não são apenas panos pretos jogados sobre seus corpos. Eles merecem cuidado, atenção, detalhes e há lojas especializadas nestes trajes.

O Cairo carrega a dureza da vida de seu povo estampada em faces sem muitos sorrisos. Ela tem sol e o clima do deserto marcados como vincos rasgados na pele do rosto das pessoas. Para amenizar tudo isso ela tem a marca da passagem do menino Jesus com Maria e José, fugidos do rei Heródes. Simplesmente emocionante.

Ela tem o ouro das tumbas em exposição no Museu do Cairo. Em cada galeria ou sala é possível estar por entre os tesouros desenterrados das areias e a história da humanidade. Ela tem incontáveis mesquitas com torres de nome Minarete, por isso é chamada de "Cidade dos Minaretes". É o local de onde o aluadem, o homem encarregado de convocar em voz alta os mulçumanos para as cinco orações diárias, o faz com pontualidade britânica.

Mesquita cidadela de Saladino/Foto: Raquel Ramos

 

Trânsito e Comércio  

Há algo que ninguém que vá à cidade do Cairo, deixa de comentar, de se assustar e, mesmo sem compreender, passa a aceitar. É o trânsito e o comércio no mercado Khan El Khalili. Nem o mais fiel vídeo do YouTube é capaz mostrar o que é essa realidade. Nem pedestres nem carros obedecem à faixa ou placa de trânsito. Atravessam as ruas por entre os carros, ninguém respeita semáfaro, mas também ninguém atropela ninguém e, acredite, é sem estresse. As buzinas soam estridentes como alertas e não como ofensas. Estranhamente não há ônibus de transporte urbano. Em contrapartida, as vans são aos milhares e fazem este papel.

A experiência no mercado é sem descrição. No Egito, pechinchar o valor na hora da compra funciona como uma tradição. Essa é uma prática enraizada no sangue do homem egípcio e a negociação parece não terminar nunca. Por maior que seja o desconto obtido você tem a sensação de que foi explorado. E tenha certeza de que foi, porque eles nunca saem perdendo. Qualquer mercadoria você consegue adquirir pela metade do preço, às vezes muito menos. 

Se você se nega a comprar eles o seguem pelos corredores do mercado a insistir e fazem uma contra proposta. Ainda assim, é possível dizer não para que eles abram a possibilidade de você fazer outra oferta. Este vai e vem pode levar horas até que a compra se concretize. É muito cansativo e, em muitas situações, preferi não demonstrar interesse por alguma mercadoria a enfrentar toda essa mediação. O trabalho é essencialmente feito por homens. Não há mulheres trabalhando nas lojas do mercado.

Comida e suco

Também não tive problema com alimentação ou a tão profanada água. Num passeio a pé pelo centro da cidade, não resisti à cor vemelho rosada do suco de romã, um dos frutos mais conhecidos do Egito. Bebi sem me dar conta se era ou não feito com água mineral. E, certamente não era. Atraída pelo homem vestido em traje típico, senti o sabor do suco de amora. Sobre frutas, o morango tem uma consistência e doçura que nunca senti nada igual em outro lugar.

Durante um outro passeio pela rua, fui abordada por um casal que, ao me ouvir falar português parou para conversar. Tratava-se de uma brasileira casada com um funcionário do corpo diplomático egípcio no Brasil. Eles comiam e também não resisti ao aroma da comida vendida no carrinho de rua. Provei. Tratava-se de um delicioso preparo líquido, como um caldo, feito de grão de bico e aveia.

Se você for ao Cairo não pode deixar de comer Koshray no Abou Tarek, uma restaurante no centro da cidade. É bem popular, lotado de pessoas. Havendo disponibilidade, é possível sentar em qualquer mesa, mesmo que já tenha outras pessoas. Ninguém ocupa lugar para ficar conversando. Lá os clientes comem exageradamente rápido e a rotatividade é assustadora.

Koshary é uma comida típica do Egito, feita com macarrão, arroz, lentilha, gão de bico e cebola frita. À parte é servido um molho de tomate, muito bom e bem temperado, molho de vinagre e alho, além da pimenta. Cada ítem é oferecido para realçar o sabor do prato. Feita basicamente de carboidrato é uma refeição popular e barata. 

 

Centro da cidade do Cairo. Eu, bebendo um copo de suco de amora, pessoas transitando pela calçada e carros nas ruas. Foto: Raquel Ramos


As pirâmedes

Passada a primeira semana no Egito, depois de ir até Abul Simbel, no extremo sul, voltamos ao Cairo.  Deixar para conhecer as pirâmides por último foi uma escolha. Mais do que uma escolha de logística, foi de estratégia e não poderia ter sido mais acertada. Nada melhor do que retornar com esta última imagem na memória.

Poucos sabem, mas a Grande Esfinge e as Grandes Pirâmides estão localizadas em Gizé, a terceira maior cidade do país, na margem ocidental do rio Nilo. A proximidade de 20 km e o tráfego feito sem sair da região metropolitana dá a impressão de estar em território da capital Cairo.

Finalmente elas. Seculares, misteriosas e onipresentes na história do Egito. São só três montes de pedra sobre a terra árida, mas que fazem você se calar diante de tanta magnitude. Há que se reverenciar diante delas. Estão lá e um pensamento é inevitável. Revivo os tempos de escola e das aula de História Antiga do professor Carlos Humberto Perdeneira Correa, na Faculdade de História. Só resta uma conclusão: elas têm um poder de sedução que leitura nenhuma, estudo ou fotografia são capazes de transmitir tamanha grandeza.

Construídas pela civilização do Antigo Egito, as pirâmides eram mausoléus que serviam para assegurar a existência do faraó após a morte. Preparados com antecedência, lá eles depositavam tudo o que pudessem precisar, desde ouro, alimentos e objetos. Impressionaram-me as milhares de estatuetas de homem feitas em ouro, no tamanho próximo de 30 cm, encontradas nas tumbas e expostas no Museu do Cairo. Elas representavam os escravos que acompanhariam os faraós para servi-los na próxima vida. Não sei se é correto afirmar que davam mais importância à morte do que à vida, mas certamente acreditavam em uma nova existência.

A história do Egito é instigante e mutante. Ainda exaustivamente estudada, por lá nada é definitivo. A cada descoberta, a cada escavação, importantes informações são acrescentadas a essa antiga civilização de mais de 4000 ano. 

 

Eu, usando chapéu marrom e camiseta preta com escrita laranjada com o nome do blog superlinda. Virada de costas para a câmera e de frente para as três pirâmides Queóps, Quefren e Miquerinos. Um cenário todo na cor da areia do deserto.

Koshray comida típica do egito

Estatuetas de homem feitas em ouro, no tamanho próximo de 30 cm, em exposição no Museu do Cairo.

Gruta que marca a passagem do menino Jesus com Maria e José, fugidos do rei Heródes

Legenda de foto para acesso do deficiente visual. #pracegover.  Arte de Leticia Rieper.

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